23 junho 2023

Base Industrial de Defesa e Segurança: uma necessidade de todo o Brasil


Por José Eduardo Leal de Oliveira*

Com a elaboração da Política Nacional de Defesa (“o que fazer”) e de sua Estratégia Nacional de Defesa (“como fazer”), a Base Industrial de Defesa e Segurança (BID) ganhou uma nova impulsão, se bem que aquém daquilo que se gostaria e/ou necessitaria. Mas o que é a BID ?

O Ministério da Defesa (MD) entende a BID como o conjunto das empresas estatais ou privadas que participam de uma ou mais etapas de pesquisa, desenvolvimento, produção, distribuição e manutenção de produtos de defesa (bens e serviços) que, por suas peculiaridades, possam contribuir para a consecução de objetivos relacionados à segurança ou à defesa do País. Assim, o sucesso da BID depende do trabalho conjunto e harmônico do setor produtivo nacional, concentrado essencialmente na iniciativa privada, com o setor de desenvolvimento a cargo do Estado. Logo, o MD atua com vistas a promover condições que permitam alavancar essa BID, capacitando a indústria nacional do setor para que conquiste autonomia em tecnologias estratégicas para o Brasil. Ciente da magnitude desse desafio, o MD trabalha também para que haja esforço orçamentário continuado para os projetos estratégicos de defesa.

Em final de 2022, com a realização da 7ª Mostra da Base Industrial de Defesa do Brasil (BID/Brasil) em Brasília, DF, a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) atestou que a Indústria de Defesa e Segurança é parte fundamental no progresso tecnológico do País. O setor gera impactos positivos nas demais atividades econômicas em função de sua forte integração com outros setores, atuando como importante promotor e difusor de conhecimento. A possibilidade de aplicação das tecnologias desenvolvidas para fins militares em outras áreas, como máquinas e equipamentos, veículos e informática, representa uma grande oportunidade para a inserção do Brasil em mercados cada vez mais competitivos.

Se voltarmos ao passado, é possível navegar na evolução da BID, tirando ensinamentos que servem para nortear ações futuras.

O nascimento da BID ocorreu na segunda metade do século XVIII, por iniciativa portuguesa. Em 1762, foi estabelecida a Casa do Trem de Artilharia no Rio de Janeiro, RJ, sendo transformada, dois anos depois, em Arsenal do Trem. Seu objetivo era atender às necessidades de reparação e fundição de materiais bélicos. Naquele mesmo momento, surgiu também o Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (1763) para fortalecer militarmente a colônia, tendo como principal função realizar reparos e manutenção de navios da então esquadra real. A criação dessas duas instalações pode ser considerada como o marco inicial da BID. No entanto, após a chegada de Dom João VI ao Brasil, as atividades industriais no setor de defesa ganharam maior relevância. Já em 1808 foi criada a Fábrica Real de Pólvora da Lagoa Rodrigo de Freitas, sendo transferida para Magé, RJ, em 1824, quando passou a ser denominada Real Fábrica de Pólvora da Estrela. Essa fábrica se mantém em funcionamento até hoje, tendo sido reestruturada e renomeada para Fábrica da Estrela em 1939, para, em 1975, ser integrada à atual empresa estatal Indústria de Material Bélico do Brasil (IMBEL).

A partir da proclamação da República, a BID pode ser apresentada segundo quatro momentos, com o primeiro perdurando até os anos 1940, sendo considerada por alguns pesquisadores como o período das fábricas militares.

Nos primeiros anos após 1889, a principal diretriz do novo governo era importar os equipamentos de defesa e implementar, nos arsenais, atividades de montagem e manutenção. Assim, foram criadas a Fábrica de Realengo (1898) e a Fábrica do Piquete (1909). A primeira tinha como objetivo a produção de munição de baixo calibre e foi desativada em 1978; já a Fábrica de Piquete se destinava à produção de pólvora, deixando que o Exército não dependente do exterior. Além dessas fábricas estatais, vale destacar a criação de empresas privadas no setor de armamentos e munições. Assim, surgiram fábricas como a Boito, a Rossi e a Fábrica Nacional de Cartuchos, hoje Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC). No entanto, instabilidades políticas internas fizeram com que, ao final da I Guerra Mundial, as importações de equipamento militar cessassem e o Exército tivesse seu reequipamento congelado. Essa tendência só seria revertida a partir da Revolução de 1930, com a política do governo Vargas de expansão e modernização do parque industrial do País, promovendo assim uma maior autonomia em relação aos itens importados. Dessa forma, nos anos 1930 foram criadas fábricas para a produção de diversos itens militares, desde armamento e munição de grosso calibre a equipamentos de tecnologia e comunicação. Outra empresa fundada naquela época foi a Forjas-Taurus (1939, Porto Alegre, RS), atuando na produção de armas curtas.

Em seguida, já nos anos 1940, destaca-se a fase do conhecimento, em que o esforço estava no desenvolvimento tecnológico a fim de incentivar a produção industrial no País. Nessa fase, que perdurou até o início do período dos governos militares, foram concebidas iniciativas que resultaram em instituições de ensino e centros tecnológicos das três Forças.

Dessa forma, o início desse segundo período marcou uma transição na indústria nacional no que se refere ao crescimento industrial, principalmente pela construção da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em 1945. Na sua contramão, a II Guerra Mundial gerou um elevado número de importações baratas de material bélico e um aumento na cooperação militar, o que acabou por desestimular a própria produção nacional. Por outro lado, como toda guerra, um de seus ensinamentos mais destacados é a necessidade de valorização do desenvolvimento tecnológico próprio. Daí, surgiram iniciativas que ocasionaram o surgimento de centros tecnológicos como o Centro Tecnológico do Exército (CTEx) em 1946; o Centro Técnico Aeroespacial (CTA) em 1953; e o Instituto de Pesquisas da Marinha (IPqM) em 1959. Com pesquisa aplicada, esses centros seguem buscando desenvolver tecnologias militares e incentivar a produção industrial de equipamentos junto com empresas nacionais. As Forças Armadas criaram, ainda, instituições de ensino superior (pesquisa básica), visando à formação de especialistas próprios. Aí se situam o Instituto Tecnológico Aeroespacial (ITA) em 1950, e o Instituto Militar de Engenharia (IME) em 1959. Para encerrar esse segundo momento, merece destaque a criação da Escola Superior de Guerra (ESG) em 1949, voltada para o assessoramento de mais alto nível do binômio “segurança e desenvolvimento” aos decisores nacionais.

O terceiro momento abrange o auge e o declínio da BID, abarcando o período dos governos militares até o início dos anos 1990, em que se destacou o grande crescimento da indústria de defesa no Brasil.

O governo Castelo Branco (1964) passou a desenvolver iniciativas voltadas para o estabelecimento de um complexo industrial de defesa. Em função dos momentos anteriores, com potencial industrial e capital humano qualificado, os incentivos, aliados ao mercado internacional favorável, fizeram a BID evoluir de maneira acelerada, com um crescimento que possibilitou que o Brasil, país que praticamente não exportava material de defesa até os anos 1970, se tornasse o quinto maior exportador do mundo no setor de defesa em apenas uma década. Tendo como destaque os anos 1980, foram formados três grandes conglomerados empresariais: Engenheiros Especializados S/A (Engesa), empresa voltada para a produção de veículos blindados (que já não existe mais desde 1993); Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), empresa atuando na produção de aeronaves (que segue sendo um orgulho para o Brasil); e Avibras Indústria Aeroespacial, empresa voltada para a produção de mísseis e foguetes (que passa, mais uma vez, por momento muito delicado). A relevância desses três conglomerados em seu auge pode ser comprovada pela sua participação na balança comercial brasileira, já que em conjunto chegaram a representar aproximadamente 95% das exportações do setor militar à época.

Por fim, a quarta e última fase é marcada por uma séria crise na BID, que afetou diretamente o setor a partir dos anos 1990 até o início do século XXI, e cujos efeitos ainda se prolongam até os dias de hoje.

Naquele momento, o término da guerra Irã-Iraque (1988), os efeitos do fim da Guerra Fria e a expansão da chamada Globalização passaram a gerar um drástico enfraquecimento da indústria bélica brasileira, já que seus produtos estavam prioritariamente direcionados ao mercado externo, sem haver, por parte do governo brasileiro, políticas públicas que garantissem às empresas nacionais a sustentabilidade econômica necessária.


E qual o cenário atual da BID ?
O Brasil é um país com desafios continentais. São 8,5 milhões de Km² de território (5º maior), quase 17.000 Km de fronteiras terrestres (3º maior), 10 países limítrofes, um litoral de aproximadamente 7.500 Km de extensão, e 215 milhões de habitantes (7º maior).


Nesse contexto, afirmar a necessidade de se ter uma indústria de defesa organizada, forte, inovadora e autossustentável não é um devaneio. A geração de empregos, a atração de investimentos e o aumento de exportações representam desenvolvimento e ganhos para a sociedade como um todo, além de projetar poder e atuar também na política externa brasileira. Basta olhar para países desenvolvidos e em desenvolvimento, onde a valorização da economia de defesa assume um caráter essencial para as políticas públicas voltadas para esse setor.

Dados do MD mostram que atualmente a BID é composta por 170 empresas, sendo 137 credenciadas como Empresas Estratégicas de Defesa (EED), com 1.276 produtos catalogados, sendo 1.160 como Produtos Estratégicos de Defesa (PED).

Segundo a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), 70% das empresas da BID se situam nas plataformas naval e aeronáutica; a plataforma terrestre, incluídos equipamentos individuais, sistemas eletrônicos, armas e munições, representa pouco mais de 20%. O restante se divide nas áreas nuclear e espacial. Assim, parece haver uma contradição quando se vê a própria Estratégia Nacional de Defesa, que define três setores tecnológicos estratégicos, considerados decisivos para a Defesa Nacional: o nuclear (Marinha), o espacial (Aeronáutica) e o cibernético (Exército), os quais devem ser fortalecidos, buscando promover a capacitação e o domínio tecnológico nacional.

Soma-se a tudo isso a permanente necessidade de atualização da mão de obra, a imperiosa retenção de talentos no País, o incremento das pesquisas nas universidade e centros tecnológicos, e a sempre desejada priorização da dualidade de bens e serviços. Produtos de defesa requerem longo prazo para maturação de seus projetos, possuem uma obsolescência acelerada, e acabam por sofrer influências geopolíticas e estratégicas que geram controle e obrigações internacionais.

Por outro lado, merecem destaque os recentes dados de exportações nos últimos anos. Em 2021, não obstante aos efeitos da pandemia, foi obtida a cifra recorde de US$ 1,7 bilhão, representando acréscimo de 168% em relação a 2014.


Vendo a articulação da BID no território nacional, se pode destacar a existência de associações que procuram congregar, representar e defender os interesses das empresas de defesa, contribuindo, dentro de suas possibilidades, na geração de oportunidades e na formulação de políticas públicas.


Em agosto de 2022, o Governo Federal aprovou o Decreto 11.169, que institui a Política Nacional da Base Industrial de Defesa, destinada a orientar a atuação do Poder Executivo (não exclusivamente do MD e de suas Forças Armadas) no fortalecimento do setor produtivo de bens e serviços na área da Defesa Nacional, procurando estimular a competitividade e a autonomia em tecnologias estratégicas, com participação das áreas de ciência, tecnologia e inovação, promoção e inteligência comerciais, financiamento e garantias, tributação e orçamento.


Ao concluir essas rápidas reflexões, pode-se verificar que a BID brasileira passou por diferentes momentos em sua trajetória. Desde a implantação de um parque fabril até o incentivo na capacitação de seus recursos humanos, foi vivenciado o seu auge na segunda metade do século XX. A partir de então, uma nuvem negra se abateu sobre ela nos anos 1990 e 2000, quando o próprio entendimento do que é um conflito moderno apresentou novas facetas.

O século XXI mostra a importância de entes não-governamentais e a informação (e desinformação) como atores de destaque na guerra atual. Outras expressões do Poder Nacional (política, econômica, psicossocial e científico-tecnológica) aparecem no tabuleiro bélico, sem, contudo, se menosprezar a expressão militar. Esta deve ser forte e dissuasória para permitir e respaldar opiniões e decisões nos cenários regional e mundial.

Corroborando com essa importância da expressão militar, dados mostram que os gastos militares globais aumentaram 3,7% em 2022, chegando a US$2,24 trilhões, equivalendo a 2,2% do PIB global (aqui se investe 1,2% do nosso PIB, atrás de Colômbia, Equador, Uruguai, Chile, Bolívia). O motivo disso ? Pode-se citar a guerra na Ucrânia e tensões no leste da Ásia.

Assim, cabe ao Brasil envidar todos os seus esforços no fortalecimento de sua indústria de defesa, o que não cabe exclusivamente ao MD e às suas três Forças Armadas. Existe sim algum entendimento da sociedade em tal assertiva, mas ainda muito aquém daquilo que se espera de um player de importância como é o nosso País.

Em Defesa, não há espaço para o improviso. Não se pode ser pacífico sem ser forte.



*Sobre o autor: José Eduardo Leal de Oliveira

 – Gen Veterano – Ex Diretor de Governança e Estratégia dos Correios; antigo Subchefe de Operações e Subchefe de Logística e Mobilização do Ministério da Defesa, e Comandante da 17ª Brigada de Infantaria de Selva.

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