O Brasil sempre foi reconhecido internacionalmente como um país de povo ordeiro, receptivo e pacífico, e que não possui conflitos abertos com seus vizinhos, problemas fronteiriços ou pendências territoriais, e nem tão pouco pretensões de hegemonia ou imposição política, econômica ou militar dentro do que se chama, no jargão militar, de entorno estratégico nacional. A identidade nacional e a vocação para o desenvolvimento econômico e social de seu povo dentro da massa continental terrestre brasileira é assunto claro, definido e objetivo público adjudicado na constituição, nas leis, projetos e políticas públicas nacionais. Para o Brasil, é condição sine qua non viver de dentro dos acordos internacionais de que fazemos parte, consoantes os valores propagados pelas Nações Unidas – ONU, da qual fazemos parte desde a fundação, e defendemos, por princípio, a igualdade nas relações entre os países. Conquanto, sabe-se que as relações internacionais não são feitas à exata semelhança daquilo que é expresso nos muitos documentos, declarações e acordos assinados ao longo da história, e que nem sempre são lúcidos e representativos dos interesses reais de quem efetivamente tem o poder nas mãos. Como se diz, os países não tem amigos, tem interesses.
Dentro da perspectiva assumida pela diplomacia brasileira desde os tempos do Barão do Rio Branco, afirmar-nos como país soberano, independente e capaz de defender-nos e posicionar-nos diante dos demais de forma igual, fraterna, respeitosa e firme, faz parte do corolário de mais de um século de relações internacionais nas quais se buscou mostrar o Brasil ao mundo como um parceiro digno de confiança no mais diferente viés de tratamento, de tal forma que a identidade nacional afirmada internamente seja vista, compreendida e aceita como nosso “cartão de visita” nas relações que temos e procuramos manter e construir. O diálogo, assim, sempre foi uma característica intrínseca particular no que diz respeito aos negócios no, e com, estrangeiro(s), fazendo com que a defesa de nossos interesses lá fora sejam sempre pautadas pela disposição de sempre manter as portas abertas e esgotar todas as possibilidades do diálogo como “arma” primária de negociação.
Isto posto, é preciso lembrar que desde a sua independência o Brasil apesar de buscar francamente posicionar-se no mundo de forma a manter suas relações o mais cordiais possível com todos os países, nunca deixou de ter problemas no campo da Defesa Nacional, a começar pela própria guerra da independência, só conquistada de fato depois de muita luta já em 1823. Assim também muitas revoltas e guerras internas marcaram todo o Império, onde o exército teve papel crucial na pacificação e unidade do país, bem como combateu diversas vezes com países vizinhos na defesa dos nossos interesses. O começo do século XX foi marcado por diversas questões fronteiriças com vizinhos e mesmo potências mundiais da época, e que determinaram a geografia atual dos limites do Brasil moderno, não sem a composição conjunta de diplomacia e poder militar. Este período também foi marcado infelizmente por dois conflitos militares mundiais, ambos os quais o Brasil não estava militar, política, econômica e industrialmente preparado.
A segunda metade do século passado também vai ser marcada pela divisão do mundo entre os blocos capitalista e socialista capitaneados por USA e URSS, na qual o Brasil foi, digamos, um ator secundário, a nível mundial, mas não sem deixar de ter papel importantíssimo em diversos conflitos na América Latina, sempre sob a bandeira da OEA, e da ONU mundo afora nas diversas missões de paz. Houveram diversos pequenos conflitos mas que não chegaram a fatos mais sérios, como a questão da “guerra da lagosta”, ainda desconhecido da maioria, mas que deixaram marcas muito sérias ao demonstrar mais de uma vez nossa insônia, diria irresponsabilidade e\ou indiferença, em relação ao tratamento dado ao tema Defesa Nacional. Mais recentemente o Haiti mostrou novamente ao país, e de certa forma às forças armadas e o Ministério da Defesa, que não estávamos preparados de forma adequada para enfrentar aquele teatro para o qual fomos chamados a gestar a então força de paz. Foram mais de 10 anos de operações que demonstraram aos nossos militares que apesar da qualidade do material humano que temos, isto por si só não é suficiente para conquistar os objetivos propostos para a defesa do país e mesmo do cumprimento das missões no exterior, que não raras vezes nos chegam convites de várias partes, sejam países ou instituições.
O marco legal mais recente que se propõe a dar à Defesa Nacional a importância que lhe cabe dentro do processo de planejamento público constitui-se da Política Nacional de Defesa – PND, a Estratégia Nacional de Defesa – END e o Livro Branco da Defesa – LBD. Estes três documentos norteadores são a base de referência para jogar alguma luz sobre o tema Defesa Nacional de forma ilustrar as responsabilidades do Estado, da sociedade e do poder político, a fim de organizar e planejar a Defesa, bem como dar-lhe caráter público e democrático. Sem a participação da sociedade e da colaboração pactual entre o poder político e institucional, de pouco ou nada valem estes documentos a não ser para oferecer um certo ar de seriedade a um assunto que não costuma chamar a atenção de quase ninguém no Brasil.
Diante dos muitos desafios que se tem a enfrentar, a partir da criação do Ministério da Defesa em 1999, seja no sentido de modernizar as forças armadas, bem como prover-lhes capacidade orçamentária consequente a fim de suportar os investimentos e o custeio necessário a bem dos novos equipamentos que estão sendo planejados e\ou adquiridos através dos diversos projetos estratégicos, é mister questionar se de fato o Brasil tem o compromisso consigo de construir uma defesa nacional não apenas como questão material ou talvez humana, mas como assunto institucional de Estado, e portanto, que diz respeito à toda a sociedade, dado que as consequências da sua negligência perpassam qualquer limite estabelecido pelas conveniências políticas e governos de momento.
É preciso buscar não apenas uma identidade ao Ministério da Defesa como aferir-lhe caráter mais próprio em termos hierárquicos e funcionais, de forma que ele possa de fato e de direito gerenciar os interesses do país relativos à pasta, e também dos muitos projetos militares que são a tradução prática das respostas que damos, ou não, aqueles mesmos interesses.
A guerra na Ucrânia tem nos ensinado diariamente o quanto é preciso avançar em termos de reorganização e modernização das Forças Armadas brasileiras, tanto material como humana, de forma a permitir que tenhamos reais condições de defender, e se necessário impor, nossos interesses no entorno estratégico eleito na PND e END. Estes documentos são muito importantes por darem um norte ao planejamento público da defesa, mas, mais importante, eles também servem para confrontar-nos com as contradições entre o que falamos e o que fazemos de fato para construir uma defesa nacional coerente com o que realmente é necessário, e não apenas um rebotalho de discursos sem concretude. A guerra no leste europeu mostra mais uma vez a olhos vistos que, como dizia Rui Barbosa sobre as esquadras, Defesa não se improvisa, e nem pode ser tratada como assunto de segunda categoria ou menos importante, já que “sem necessidade ou falta de prioridade”.
O Brasil tem hoje dentro do escopo de ações do Ministério da Defesa a missão de buscar encontrar meios que possam subsidiar todos os investimentos necessários para manter os diversos projetos estratégicos das forças armadas, mas que não conta hoje com capacidade orçamentária na pasta capaz de mantê-los. Isto gera um círculo vicioso onde as demandas são sempre mais crescentes, e os recursos para custeio e investimentos diminuídos proporcionalmente pelas mais diversas situações, alheias ao poder de decisão do MD.
Assim, sem ter como contornar os limites impostos à pasta no que concerne o orçamento, e às PLOA propostas anualmente, sempre atendidas a menor do que o solicitado, quando de sua aprovação no congresso, e sem ter outras fontes regulares e fiáveis de recursos que visem manter ao menos a situação das forças militares em condições minimamente aceitáveis do ponto de vista operacional, não é possível manter capacidades militares que consigam criar dissuasão no sentido mais completo do termo.
Sem o interesse da sociedade, e do poder político, a Defesa Nacional tende a continuar em sua rotina de pires na mão para o cumprimento de suas atividades primárias, por mais oneradas que sejam ao serem instadas a cumprir as sempre mais crescentes missões complementares. Principalmente aquelas que mais interessam ao do poder político. Realmente, parece que não aprendemos as lições que a História nos legou.
*Sobre o autor: Flávio Carvalho
Administrador, Pedagogo, Professor e Mestre em Teologia
É Professor Adjunto na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas – FACED\UFAM
Educador e pesquisador em Educação, Políticas Públicas Educacionais, Gestão e Planejamento Público em Educação e Direito Educacional.
Estudioso de História Militar, Geopolítica, Estratégia, Relações Internacionais, Defesa Nacional.
Nenhum comentário:
Postar um comentário