O fato de a cidade gaúcha concentrar maioria dos carros de combate no país ajuda na cotação para sediar a futura Escola de Sargentos (ESA)
Santa Maria conta com o maior número de blindados do país e, provavelmente, da América do Sul - Humberto Trezzi / Agencia RBS
Em agosto o Alto Comando do Exército deve indicar qual cidade considera mais apropriada para sediar a futura Escola de Sargentos, um empreendimento de R$ 1,2 bilhão. A academia vai concentrar os cursos para esses profissionais das armas, hoje dispersos em 13 lugares país afora. É provável que a decisão tenha algum componente político e o presidente Jair Bolsonaro opine a respeito, mas também é possível que só os critérios técnicos imperem na escolha – e, nesse quesito, o município gaúcho de Santa Maria desponta. Estão também no páreo Ponta Grossa (PR) e Recife (PE).
O favoritismo de Santa Maria ocorre porque, além de ser a segunda maior concentração de tropas das Forças Armadas no país, é a Capital Nacional dos Blindados. O Rio Grande do Sul é o paraíso dos carros de combate e os veículos santa-marienses formam o epicentro desse tipo de arma.
Dos 2,2 mil blindados e 32 mil militares ligados às tropas mecanizadas no Exército Brasileiro, metade estão aquartelados em território gaúcho. Isso tem a ver com estratégia, mas também com história e geografia, como GZH constatou, em visita às principais unidades blindadas do RS.
O soldado gaúcho, celebrizado na literatura como “centauro dos Pampas”, já não combate a cavalo, mas a Cavalaria continua sendo a sua arma por vocação. A montaria foi trocada por blindados de até 46 toneladas, dotados de canhões capazes de aniquilar inimigos a quatro quilômetros de distância. E até a Infantaria — dos soldados a pé — possui seus veículos artilhados, para apoio das tropas.
Se os séculos passaram e a modernidade chegou, o cenário gaúcho predominante é o mesmo. Coxilhas a perder de vista, a serem vigiadas do alto — com as torres dos carros de combate a substituir o lombo dos animais.
Um dos grandes saltos para que o Rio Grande do Sul concentrasse o maior número de veículos encouraçados das Forças Armadas ocorreu em 2004, quando o Centro de Instrução de Blindados do Exército foi transferido do Rio de Janeiro (onde estava desde 1996) para Santa Maria. Foi o típico caso de adequação de uma arma (e dos experts nela) para o território mais apropriado a seu uso. Os santa-marienses já contavam com o Centro de Adestramento Sul, também voltado para simulação de batalhas com blindados.
Desde então, o número de carros de combate em território de Santa Maria não para de crescer — e, por impulso, em outros quartéis gaúchos. Nada menos que 18 cidades do Rio Grande do Sul possuem força blindada, seja ela da Cavalaria ou da Infantaria.
A preferência dos militares pelo uso de carros de combate no Estado é uma mistura de fatores geopolíticos. Do ponto de vista territorial, Santa Maria fica no centro do território gaúcho, a meio caminho entre o mar e as nem sempre tranquilas fronteiras com Uruguai e Argentina.
— No pampa, a arma ideal é o blindado, pela velocidade com que consegue avançar sobre o terreno, seja no campo ou nas estradas — resume o especialista em assuntos militares Nelson Düring, editor do site Defesanet.
Tanques de 42 toneladas, como o Leopard 1A5, podem disparar projéteis mesmo correndo a 65 km/h, por exemplo. É o contrário da selva amazônica, onde só a Infantaria e os marinheiros têm condições de combater, a pé e com uso de técnicas de guerrilha e antiguerrilha.
Por tudo isso, Santa Maria é a favorita para sediar a futura Escola de Sargentos. Caso a academia vá para a cidade, o ciclo se completa. A formação técnica (sargentos e instrutores de blindados em geral) se somará ao maior número de carros de combate do país e, também, a uma fábrica de componentes para esse tipo de veículo militar, a KMW do Brasil (inaugurada em 2016).
Muita gente se pergunta: mas para que precisa tanto investimento bélico? Os militares gostam de dizer que a resposta está nas palavras de um célebre pacifista brasileiro, o jurista Ruy Barbosa. “O Exército pode passar cem anos sem ser usado, mas nem um minuto sem estar preparado”. Em resumo, nunca se sabe a hora em que será preciso usar o poder de fogo.
Centro de Instrução de Blindados, em Santa Maria - Arthur De Leon / Comando Militar do Sul/Exército/DIVULGAÇÂO
Cada tiro economizado vale um Fusca
Adestramento na área de defesa custa caro. Cada tiro de um canhão de 105 mm, o mais usado em carros de combate, custa cerca de US$ 1,2 mil (R$ 6 mil). O valor de um Fusca em estado razoável. E num treino real são feitas centenas de disparos. Como driblar esse gasto?
Com simuladores computadorizados. Em Santa Maria, nove em cada 10 atividades no Centro de Adestramento Sul e no Centro de Instrução de Blindados se situam entre o teórico e o virtual. Antes de dar qualquer tiro verdadeiro, o “boina preta” (como é chamado o combatente que atua em blindados) treina milhares de vezes em sistemas de informática.
São como jogos de computador avançados. A condução dos tanques e o disparo dos canhões são feitos por meio de cliques no joystick (controle). O cenário na tela é convincente. Coxilhas, matas e riachos parecem verdadeiros e, inclusive, podem ser cópias de cenários conflituados mundo afora, captados por meio do Google Earth. Os fones de ouvido reproduzem o ruído dos motores e das lagartas dos carros de combate. Quando há acerto do tiro, os blindados explodem em chamas. Nada muito difícil para jovens acostumados a games virtuais. Esse tipo de adestramento é chamado Simulação Construtiva.
Só que na vida real não é assim. O “boina preta” precisa calcular a influência da velocidade do vento sobre a trajetória do projétil. Deve levar em conta o clima e as dificuldades do terreno. Esse tipo de treino é feito também com tropas, orientadas por computador. É a Simulação Virtual (que mistura orientação por computador e pessoas reais, no terreno).
Numa última etapa, ocorrem os combates mais realistas possíveis, com tiros e explosões. Mas aí os militares já estão treinados — essa, pelo menos, é a ideia. É a Simulação Viva.
— O recruta é treinado em panes, acidentes e situações reais de combate. Economizamos de 2017 para cá 191 mil tiros, o equivalente a R$ 1,1 bilhão em 27 exercícios, que adestraram 4,6 mil militares. Após os confrontos é possível conferir o grau de acerto — resume o comandante do Centro de Adestramento Sul, coronel Daniel Fornazari.
Carro de combate com cem anos ainda roda
O primeiro veículo de combate utilizado pelas tropas brasileiras completa cem anos em 2021 e ainda roda, acredite. É um Renault FT-17, construído em 1921 e que, no Brasil, recebeu o nome de Guararapes.
Estacionado no pátio do Centro de Adestramento Sul, ele recebe manutenção cuidadosa, ao ponto de ligar e rodar, se for preciso. O carro de combate francês foi trazido ao Brasil pelo capitão José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, que rende um capítulo à parte na história dos blindados brasileiros.
O paraibano Pessoa era sobrinho de Epitácio Pessoa (então presidente da República) e irmão de João Pessoa (que daria nome à capital da Paraíba). Com a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial, Pessoa foi enviado à França, como oficial da cavalaria. Lá, ele liderou um pelotão do Exército francês e foi condecorado por bravura. Terminado o conflito, ele serviu num regimento de carros de combate em Versailles, onde aprendeu a utilizar o Renault FT-17. Convenceu os superiores a adotarem esse como o primeiro blindado do Exército Brasileiro — algo que não deve ter sido difícil, já que seu tio era o presidente da República.
Pessoa escreveu obras fundamentais sobre a história dos tanques e também foi idealizador e patrono da Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende. Em 1953, virou marechal, um dos raros nas Forças Armadas.
Santa Maria é uma das mais importantes e aparelhadas cidades gaúchas - Arthur De Leon / Comando Militar do Sul/Exército/DIVULGAÇÂO
Blindados na América do Sul
O Brasil é o país que mais investe em carros de combate, tanques artilhados e viaturas de transporte de pessoal na região:
Blindados no Brasil e no Rio Grande do Sul
A frota de blindados em geral é composta de carros de combate (com lagartas), blindados sobre rodas, viaturas de transporte de pessoal, viaturas de engenharia, obuseiros autopropulsados e viaturas antiaéreas. Abaixo, os números totais:
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